sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

As mater dolorosas de Giacomo Puccini


Em comemoração ao centenário de Giacomo Puccini, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro apresentou, até o dia 27 de julho de 2024, seu
Trittico, conhecido do público sobretudo por sua reputação, pois, das três óperas que o compõem, a mais representada é a cômica, Gianni Schicchi
Exibida pela primeira vez no Metropolitan de Nova Iorque em fins de 1918, a tríade de óperas reproduz uma estrutura de programa teatral bastante comum na Europa (e por tabela no Brasil) durante o século XIX. Esses programas, longos, alinhavavam em sequência um conjunto de peças curtas, cômicas ou dramáticas, normalmente farsescas e peças de sensação (ou seja, dramalhões sangrentos, cujos enredos eram extraídos diretamente das páginas policiais). O bom senso fazia com que se apresentassem antes os dramas, fechando-se as récitas com as comédias, para que o público voltasse para casa com um sorriso no rosto. 
Essa sequência de dois dramas e uma comédia, cada qual em um ato, é adotada no Trittico pucciniano. Meu intuito não é esmiuçá-la aqui, mas sim me concentrar em duas personagens femininas deste conjunto de obras, em parte porque os dramas de ambas se aproximam, em parte porque fiquei profundamente tocada pelas performances das artistas que lhes deram vida nesta montagem carioca: Eiko Senda e Ludmilla Bauerfeldt, na récita a que assisti, em 21 de julho. 
Senda desempenhou o papel de Giorgetta em Il Tabarro, trama ambientada na França popular dos anos 1920; recorte humano aproveitado pelos dramaturgos naturalistas desde a virada do século. O libreto, de Giuseppe Adami, é oriundo da peça La Houppelande, de Didier Gold, estreada em Paris em 1910. A trama se passa às margens do rio Sena, na embarcação de Michelle, marido de Giorgetta. Obras dramáticas – peças e filmes – com esta temática pululavam então, já que essas barcaças são uma entidade francesa (passeando às margens do Sena, o turista ainda hoje se depara com as peniches, que são casa e ganha-pão de um número não desprezível de pessoas). 
Como corresponde às obras em ato único, a trama desdobra o enredo com rapidez. Giorgetta principia rejeitando as carícias do marido, e logo, em meio às interações aparentemente sem consequências que ela trava com os empregados dele, ao longo de um número de dança, descobrimos que ela está envolvida amorosamente com um desses homens, Luigi. 
Obra de inclinação naturalista, Il Tabarro coloca em primeiro plano os instintos incontroláveis que determinam o curso das existências. A mulher cede à paixão e entrega-se à relação extraconjugal. O marido cede à ira e mata o amante da esposa – e conforme a música de Puccini nos faz antever, provavelmente também acabará por matá-la. Nenhuma liberdade associada à vida à flor das águas é aproveitada por essas personagens, presas em seus dramas interiores. 
A encenação carioca do Trittico desloca a ambientação da trama, que seria na embarcação, para um galpão escuro, deixando ainda mais patente esta prisão. Descobriremos ali, por meio de Michelle – homem que, antes de se saber traído, é torturado pela rejeição –, que o casal havia perdido recentemente um filho, que amorosamente acalentavam sob a proteção do capote dele (o tabarro do título). 
Esta informação ganha valor ao analisarmos a ópera segundo os cânones do naturalismo. O caráter visceral da relação entre a mãe e o filho, que parece apressar os acontecimentos nesta ópera, é patente ao menos noutras duas obras de Puccini, Madama Butterfly e Suor Angelica
Eiko Senda tem intimidade com essas personagens puccinianas dilaceradas. Ela, atravessada pela Madama Butterfly (um de seus cavalos de batalha, que ela incorporara com excelência meses antes em São Paulo) – personagem que sucumbe após saber que, além de perder o amado, ele ainda lhe tirará o filho deles –, impregna de densidade psicológica a mulher que, se é culpada pela traição, é antes deslocada pela perda incomensurável. 
Orientada pela direção consistente de Pablo Maritano, Eiko constrói com profundidade a repulsa, a paixão e a dor muitas vezes misturadas desta mulher do povo – personagem tão cara aos autores naturalistas, para os quais os estamentos sociais inferiores eram os sujeitos ideais para que se observassem a ação dos instintos sobre os seres. Sua entrega vocal e cênica enche de matizes uma obra que, pela sua duração e temática principal – o triângulo amoroso –, estaria inclinada a ser lida, nesta sociedade machista, sobretudo como um caso de traição exemplarmente punida. 

A exemplo de sua colega, Ludmilla Bauerfeldt, em sua performance como a personagem-título de Suor Angelica, extrapola os limites do enredo da obra. Também esta obra de Puccini (o libreto é de Giovacchino Forzano) coloca em cena a sociedade machista, contando a história da jovem que, no século XVII, é internada num convento pela família nobre após gerar um filho fora dos liames do casamento. 
 A leitura de Pablo Maritano e a cenografia de Desirée Bastos sublinham a severidade deste quadro social permeado pela igreja, reduzindo a sororidade e a ludicidade da relação entre as irmãs, presente na trama. Angelica resta só em meio às paredes opressoras do claustro sombrio, enquanto no libreto a cena se dá ao ar livre, num luminoso entardecer. 
O pouco suporte emocional que ela encontra por parte da tia calculista e a obrigação, por parte de duas irmãs, de assinar o documento que a parenta leva ao convento, com a disposição da herança, apressam o desenlace de Angelica, anunciado pelo libreto desde o princípio da ópera: “O sorella, la morte è vita bella!”. Nesta encenação, Angelica ganha um primeiro plano ainda mais patente do que lhe dão libreto e música, aparecendo em cena muitas vezes apartada das demais freiras, o que salienta a sua solidão, enquanto noutros momentos recebe uma iluminação incandescente que patenteia o seu dilaceramento, expresso pelo seu rosto crispado – por exemplo, quando se retira do claustro pela primeira vez, e é iluminada pela luz que vem do cômodo contíguo. 
Cenografia, encenação e, sobretudo, a inteligência cênica de Ludmilla Bauerfeldt preparam o público para o desenlace da ação. O desespero da personagem ao saber que o filho morrera; a insânia que aos poucos vai tomando conta dela – o que a faz, na contracorrente do catolicismo, apressar a sua própria morte para se encontrar com o filho; e, enfim, o seu arrependimento são construídos pela artista com uma excelência emocionante. Além de vocalmente impecável, Ludmilla mergulha na personagem que desempenha com uma profundidade dramática inusual, em que a expertise técnica se deixa atravessar por uma emoção genuína, que arrasta de roldão toda a plateia. Sortudos daqueles que a viram desempenhando este papel, pois vivenciaram uma experiência estética única (há um longo trecho filmado do espetáculo, que convido fortemente o leitor a ver aqui).
O trabalho realizado por essas duas grandes artistas nessa produção do Trittico destaca que, para além da qualidade do canto, a atuação - e, neste sentido, uma direção consistente dos atores/cantores - é um aspecto fundamental da ópera contemporânea, pois consegue dar atualidade a obras criadas há tempos, fazendo ressoar os dramas com os quais nos debatemos hoje.

As imagens são oriundas de material de divulgação e das redes sociais de participantes dos espetáculos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 8

“Narysy Radianskoho Mista”

Dia 8, sábado, 11 de outubro 

No oitavo e último dia da Giornate del Cinema Muto foi exibido, em sua modalidade virtual, um longo e suculento programa duplo composto: 1- por “Aleppo” (1916), “La capitale du Brésil” (1931-1932) e “Narysy Radianskoho Mista” (Sketches of a Soviet City, 1929), acompanhados por Mauro Colombis; 2- por “Soldier Man” (1928) e “Are Parents People?” (1925), com acompanhamento musical, respectivamente, de Mauro Colombis e Neil Brand. 
Grosso modo, uma sessão dedicada aos documentais, outra, a filmes de ficção. A primeira apresentou duas obras mais tributárias do primeiro cinema, voltadas à mostração da cidade síria de Alepo e do Rio de Janeiro. Ambas têm vieses contemplativos e encomiásticos. São parte de um programa mais amplo da mostra, denominado “The World that Was”, e embora a intenção de Jay Weissberg, seu curador, não fosse a visada idealizada ao passado como um lugar melhor, não podemos nos furtar à nostalgia enquanto as observamos. 
A versão de “Aleppo” (1916) apresentada é embebida (portanto, colorida), oriunda do Eye Filmmuseum, de Amsterdã. A obra apreende a convivência entre a cidade antiga e a, então, moderna – já que esta nascera nas adjacências daquela, e os sítios arqueológicos (a cidade fora pródiga na época da rota da seda) mantiveram-se por séculos de pé, até que a recente guerra civil de que o país é palco os destruiu. Assim, ruínas e mesquitas, oriundas do passado e do presente, surgem em longos panoramas, e homens, mulheres e crianças, seus usos e costumes, são perscrutados quando a câmera passeia pelo meio deles. 
O corte abrupto final aponta para a ausência de material fílmico ou para o desinteresse de se construir uma curva dramática. Antes de qualquer preocupação mais direta de preservação do cinema para as futuras gerações, parece emergir dessas imagens sobretudo o desejo de congelar o tempo, para que aquele mundo tal qual ele era fosse fruído décadas mais tarde. 
O segundo filme tem, para nós, obviamente um interesse maior. 
“La capitale du Brésil” (1932-1932), segundo a cartela de apresentação, é uma “Edição do Museu Agrícola e Comercial do Ministério da Agricultura”. Há ainda uma cartela adicional do “Ministry of the Interior”, que atesta a autorização para que a obra fosse exibida no Egito, o que aponta para uma possível encomenda deste país – o mistério concernente à sua rodagem também não é elucidado pelo Catálogo e pode titilar a curiosidade dos pesquisadores brasileiros da área. A versão exibida, oriunda da Nasjonalbiblioteket, de Oslo, é também embebida e denota apuro técnico. 
E aqui, também, encontramos o tempo passado encapsulado para o nosso deleite. O interessante neste filme é a ambivalência entre os sítios que remanesceram e a guinada havida nos costumes. Malgrado seja produzida pelo Ministério da Agricultura, a obra tece uma visada turística da cidade, captando planos fotográficos de seus locais de interesse: o Theatro Municipal, a Quinta da Boa Vista, o Jardim Botânico, o Jóquei Club, o Fluminense Football Club. 

Enfim, “Narysy Radianskoho Mista” (1929), obra principal do programa, rodada por Dmytro Dalskyi na República Soviética Socialista da Ucrânia, tem maior interesse do ponto de vista cinematográfico. 
Exibida no programa “Riscoperte” (Redescobertas) do evento, bebe da estética das sinfonias metropolitanas, de que “Berlin, Symphony of a City”, de Walter Ruttmann, rodado dois anos antes, é o mais candente exemplo (embora possamos destacar também “Um homem com uma câmera”, de Dziga Vertov, daquele mesmo ano de 1929). 
Efetivamente, a obra compartilha com esses dois filmes a montagem ágil, a sobreposição de imagens. Neste sentido, esses “Esboços de uma cidade soviética” investem efetivamente na construção imagética que buscava mimetizar a cidade cintilante, amoldada por mãos operárias, que se buscava construir do ponto de vista político. 
Assim, o objetivo propagandístico é patente nela. Sem rebuço, a obra mostra o burilamento dos corpos e espíritos que seriam úteis ao Estado desde a infância: daí os exercícios físicos realizados pelos meninos e o incentivo à leitura, que culmina na atribuição do prêmio de melhor autor operário. Em paralelo, incensa-se o desenvolvimento industrial, de um lado, e do outro, o emocional – na multiplicação de crianças que correm na direção das “mamães”, ao saírem da escola. “Narysy Radianskoho Mista” retrata, assim, a produção soviética almejada naquele período – efusiva, upbeating – e, por consequência, demonstra porque artistas como o compositor Dmitri Schostakowitsch foram perseguidos ao caminharem em sua contracorrente. 
O segundo programa do dia, e último da mostra, foi dedicado a duas obras de ficção. A primeira delas, a comédia norte-americana: “Soldier Man”, foi rodada por Harry Edwards em 1926, segundo Jay Weissberg, e exibida em 1928. A obra, oriunda do programa “The Chaplin Connection”, tem ainda a curiosidade de possuir, como um de seus roteiristas, Frank Capra – e é interessante percebermos as influências que o slapstick teve no burilamento da screwball comedy, de que Capra seria um dos magos nos anos de 1930. 
Protagoniza-a Harry Langdon, e porque ele é um ótimo ator, a obra recende, num só tempo, humor e melancolia, como as screwballs tão bem fariam futuramente. Langdon é o soldado sem nome que perde o navio que levava as tropas vitoriosas para a casa, finda a Primeira Grande Guerra, e que vaga pelos campos solitário e faminto, ainda se supondo em pleno conflito. Impagáveis episódios cômicos brotam da premissa melancólica: enquanto os habitantes locais utilizam as dinamites abandonadas em seus afazeres, ele se imagina protagonizando um combate cruento, por exemplo. 
A obra salta da ficção histórica para a mais descabelada fantasia quando o homem é percebido como o sósia do rei Strudel XIII (também interpretado por Langdon), do reinado fictício da Bomania. Pordenone exibiu durante alguns anos esses filmes que homenageiam a “Ruritania”  e sobre eles teci alguns comentários aqui , reinado fictício da Europa central que foi palco de “O Prisioneiro de Zenda” e deu ensejo para um sem-número de obras do tipo. Esta foi concebida, segundo informa o Catálogo, como uma paródia de “O Prisioneiro...”, todavia, sua estreia foi adiada por dois anos, devido ao excesso de filmes com essa temática existente então, e seus quatro rolos iniciais transformaram-se em três na ocasião do lançamento. 
O nome culinário do monarca não é casual. Strudel XIII procurava especialmente saciar as suas necessidades biológicas: o rei beberrão negligenciava a esposa e, além de tudo, era belicoso – mal maior naqueles tempos em que o cinema contribuía com a propaganda antibelicista. O famélico soldado ascende à realeza como títere, para encerrar a guerra ainda protagonizada pela Bomania. No entanto, acaba por também representar um melhor marido aos olhos da menosprezada rainha sem nome interpretada por Natalie Kingston. 
O filme tem ritmo e preciosos achados cômicos – veja-se o esforço do soldado-tornado-rei de cumprir as suas obrigações maritais junto à rainha e, ao mesmo tempo, alimentar-se. Todavia, a redução de sua metragem tem um impacto negativo na economia narrativa, já que a obra se encerra abruptamente, sem desenlaçar com clareza, seja o episódio envolvendo o casal real, seja a troca de papéis. 

Enfim, a derradeira obra, “Are Parents People?” (1925), é uma comédia norte-americana de Malcom St. Clair tributária das obras de Ernst Lubitsch – seja pelo recorte social retratado, a alta burguesia, seja, enfim, pelo humor sofisticado. 
A qualidade inferior da cópia (um DCP oriundo de um 16mm embebido) é compensada pelo interesse da história – o qual repousa menos no entrecho que na forma como ele é contado. A obra centra-se na família da colegial Lita Hazlitt (Betty Bronson), cujos pais, Alita Hazlitt (Florence Vidor) e James Hazlitt (Adolphe Menjou), estão em pleno processo de divórcio – a câmera capta as entradas e saídas furtivas do casal de seus respectivos quartos, desejosos de não se esbarrarem, bem como as suas pequenas disputas. 
No melhor estilo “The Parent Trap” (1961, 1998), a jovenzinha fará de tudo para reunir os pais. A trama equilibra arejamento na forma e moralismo na temática. Cabe ao Dr. John Dacer (Lawrence Gray), interesse romântico da garota, pespegar no casal a lição de que deveriam deixar de lado a sua “incompatibilidade” – motivo pelo qual se separavam – e cuidar da filha, que lhes escapava. 
Na verdade, Lita procurava aplicar aos pais a estratégia aprendida em certo livro de autoajuda, segundo o qual todas as diferenças do casal caíam por terra quando a prole estava em perigo. Assim, aproveitando-se de um equívoco, ela acaba expulsa da escola e desaparece de casa. 
Os quiproquós se seguram sobretudo às custas da adorável Betty Bronson, que dá corpo admiravelmente bem a uma dessas mocinhas arejadas que o cinema dos anos de 1920 principiava a construir, reflexo daqueles novos tempos. É ela quem vai à casa do moço, procurando pregar uma peça nos pais e o “compromete”. E é ela que, naquela época na qual o cinema era uma das principais indústrias dos Estados Unidos, torce o nariz e, enfim, manipula um ídolo cinematográfico, para que ele sirva ao papel de Cupido que ela tomava para si. Depois de nos depararmos com tantas mulheres malfadadas, esse “Are Parents People?” foi um bem-vindo respiro. 
E assim terminamos esses oito dias – passemos ao largo do fato de eu ter atrasado esse último texto – de reflexões sobre filmes silenciosos, semana sempre tão esperada por mim. Meu tão prezado encontro anual com a Giornate é o encontro comigo mesma; o apanhamento dos meus retalhos espalhados na loucura cotidiana. Que venha o próximo, presencial ou virtual, ambos igualmente amados.

sábado, 11 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 7

Dia 7, sexta-feira, 10 de outubro 
A produção alemã da UFA “Die dame mit der maske” (The Lady with the Mask, 1928), dirigida por Wilhelm Thiele, constou em programa único, ontem. Emerge nela o colapso social alemão que se seguiu à Primeira Grande Guerra. 
No interior de uma casa de penhores situada num subsolo, tomadas dramáticas flagram a janela a silhueta de uma mulher refinada que ali entrará para deixar o casaco de pele em troca de dinheiro para quitar os seus gastos básicos. Ela é Doris von Seefeld (Arlette Marchal), e, ao se retirar, é seguida por Alexandre von Illagin (Wladimir Gaidarow) – que, como nós, a observava. Ele recomenda-lhe um teatro de vaudeville no qual recentemente se empregara. Ela segue a sugestão do desconhecido e, assim, conhecerá a ruína. Não por conta da ausência de sucesso. Doris torna-se vedete da companhia, a mulher mascarada que arranca suspiro da população alemã. 
Escondida atrás da máscara, Doris protege a sua identidade e, por consequência, a reputação do pai, um aristocrata falido e demasiadamente afeito à moral e aos bons costumes. Tudo muda, no entanto, quando a moça é literalmente desmascarada e, com isso, passa a ser insistentemente requestada pelo empresário Otto Hanke (Heinrich George), que mesmo a ameaça denunciá-la ao pai, caso ela o rejeite. 
A trama faz uma ótima caracterização do bas-fond alemão: a ânsia da busca por diversão, mesmo que ela denote o comércio de carne humana; as inúmeras coristas a quem a entrega carnal parece ser, naquela situação econômica, a única forma de ascensão social (dentre elas, Dita Parlo, que se transformaria numa diva do cinema alemão). 
Há uma ousadia desusada sobretudo no que diz respeito à presença de pele feminina à mostra, o que, segundo aponta Miranda Reason no Catálogo da Giornate, quase levou a obra a ser censurada. Ademais, há na obra tomadas de grande força dramática, a exemplo daquela em que Doris, dançando mascarada, vê Otto em todos os rostos que a assistem, mal imaginando que entre o público encontra-se o pai dela. 
No entanto, se “Die dame mit der maske” promove uma investigação dos meandros sociais com tônus naturalista/expressionista, o filme, ao mesmo tempo, bebe desabridamente das convenções do gênero melodramático, estratégia que dá ao conjunto pouca organicidade. Veja-se o papel do namorado da protagonista da narrativa na economia cênica, sobretudo o seu esforço de recuperar uma bota que perdera, em cujo salto ele escondera as joias que os tornariam ricos – botas que ele surpreendentemente reencontra (no entanto, precisamos destacar a cena deste encontro, impagável em sua tragicomicidade) –, pouco depois de ter rompido com a mocinha por julgá-la amante do homem que a perseguia. 
Neste sentido, igualmente, a história termina num happy ending inesperado e algo postiço, dada a natureza trágica da história narrada: vinda de escapar de uma agressão sexual de Otto, Doris reencontra o namorado, descobre as novas referentes às joias e, depois de se explicar, ambos se reconciliam. Vemo-los, no desfecho da história, dentro de uma idealização conjunta: ambos se imaginam belos, perfumados e bem-vestidos, na carruagem que os levaria a um evento noturno – ao fim e ao cabo, a felicidade encontra-se nas posses materiais, o que não deixa de ser uma visada cínica à existência.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 6

Dia 6, quinta-feira, 9 de outubro 
Ontem, a Giornate del Cinema Muto virtual dedicou o seu programa único à apresentação de “L’ombra” (The shadow/A sombra), obra rodada por Mario Almirante para a companhia italiana Torino em 1923. O acompanhamento musical ficou a cargo do pianista Michele Catania. 
Encabeça-a Italia Almirante Manzini, para quem a Giornate formulou um amplo programa este ano. Segundo conta Jay Weissberg, ela era, num só tempo, uma bem-reputada atriz de teatro e uma diva cinematográfica. Recupero os anexos de minha tese de doutorado, com a compilação da crônica sobre cinema publicada nos jornais cariocas à época, nada encontro sobre ela, e tenho a gana momentânea de sanar a lacuna, coisa que evidentemente só poderei fazer mais tarde. 
Como também aponta Weissberg, a indústria cinematográfica italiana desestruturou-se após a Primeira Grande Guerra. Manzini, conforme aponta-nos o IMDB, ingressou nela a partir de 1920. Popularizou-se ao redor do mundo, mesmo no Brasil, destaca Weissberg – coisa que resta a confirmar –, pois, apesar da referida situação de penúria da indústria, conseguiu protagonizar obras rodadas com orçamentos expressivos. 
Nesta, dirigida por um primo da atriz, ela desempenha o papel da aristocrata Berta Trégner, a quem não faltavam adjetivos, verbalizados pelo talvez até demasiadamente encantado Michele (Vittorio Pieri), padrinho da jovem. Vemo-la lépida, na abertura da obra, protagonizar um jogo de tênis – já se vê que é na elite italiana que a obra se debruça –, e correr até o interior de seu faustoso palacete, para colher, das mãos do marido apaixonado  o pintor Gerardo Trégner (Alberto Collo) , a bola que casualmente fora parar ali dentro. 
Todavia, o relacionamento florescente de ambos fenece em paralelo ao degringolar da saúde da jovem, que sente, ao longo do jogo, o primeiro sinal do mal inexplicável que a acometerá – a “sombra” do título. Em virtude dele, a jovem acabará paralítica, estabelecendo-se, daí por diante, uma contraposição atroz entre a sua vitalidade pregressa e a inação. 
Berta amarga o calvário com retidão. Pede ao marido que deixe um espaço dentro de si para que ela novamente se acomode quando a sombra passar – o que remete à ideia da doença como purgação –, e passa a viver com ele num espaço cuja austeridade se assemelha à vida que então é obrigada a levar. A praticidade do arranjo faz com que ele inicie um relacionamento extraconjugal com Elena Preville (Liliana Ardea), bonequinha loura que Berta vira crescer e acolhera junto de si até que se casasse. Todavia, o público só tomará conhecimento disso na segunda parte da história, quando a trama desloca o supostamente leal Geraldo dos pés da esposa enferma e o situa na casa do princípio da obra, também seu estúdio, ao lado da amante – agora divorciada do primeiro marido – e do filho bebê do casal, que ele pintava. E ao fazê-lo, procura aderir à pedagogia misógina da época, levando o público a sentir aversão por Elena, em detrimento do marido adúltero. 
No entanto, este deslocamento dramático da casa feita enfermaria à residência solar dá-se no justo momento em que Berta recobra os movimentos. Visitando o marido para dar-lhe as novas, ela se encontra antes com a criança e depois com o cínico Geraldo. 
Sabedora do laço que unia os dois seres e do lugar que Elena ocupava na história, Berta decide se afastar do agora arrependido marido, não o fazendo apenas ao descobrir que a antiga amiga também mantinha um amante – não outro senão o ex-esposo dela. 
Poupo os leitores dos quiproquós que determinam o desenrolar dos fatos, detendo-me apenas na moral melodramática que os enfeixa. Berta aceita o perdão do marido e toma para si o filho de Elena, considerando-a moralmente corrompida para criá-lo. O fato de Geraldo proceder do mesmo modo e ser perdoado pela narrativa explicita um traço importante do gênero, que dicotomizava a mulher, ora considerada santa, ora pecadora. Não haveria espaço para o perdão a Elena – ao menos na Terra. 
Se, do ponto de vista do entrecho, a obra emana um chorume de época, ela alça maiores voos do ponto de vista cinematográfico. Há um cuidado na tessitura sobretudo da personagem de Berta, a quem o sofrimento transforma em efígie, e sacraliza-se a imagem da criança, retratada como se fosse uma estátua renascentista ou mais uma das obras de arte de Geraldo – o que prepara o público para a decisão da esposa traída de adotá-la e criá-la como sua. 
E destaca-se, sobretudo, a persona cinematográfica de Italia Almirante Manzini, uma atriz da potência de uma Francesca Bertini – veja-se toda a sequência que se segue à descoberta da traição, de sua ida à igreja, onde ela clama por uma nova doença que lhe dê o esquecimento, ao seu caminhar alheado pela rua, onde ela procura pôr termo à existência, até, enfim, a chegada à casa e a revisitação da poltrona que acolhera a sua resiliência enquanto doente, e agora a encontrava com o semblante turvado. Uma grande atriz, que a Giornate homenageia – e eu descubro – em boa hora.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 5

Cecyl Tryan em “Il siluramento dell’Oceania”

Dia 5, quarta-feira, 8 de outubro 
O programa do quinto dia da Giornate foi duplo. O primeiro deles foi composto pelo curta-metragem italiano “Colonia alpina” (1924-1929), de Emilio Gallo, após o qual se seguiu o longa italiano “Il siluramento dell’Oceania” (Le torpillage de l’Océania/O torpedeamento do Oceânia, 1917), de Augusto Genina, com acompanhamento musical de Jose Maria Serralde Ruiz. Já o segundo foi composto pelo longa norte-americano “The blood ship” (1927), de George B. Seitz, e o acompanhamento musical ficou a cargo de Donald Sosin. 
“Colonia alpina”, apesar do momento em que foi rodado, não deve nada à estética dos filmes do primeiro cinema. A obra é um compilado de imagens do acampamento de verão que lhe dá título, rodadas ao longo de meio decênio por este cineasta diletante que, na cartela inicial do filme, desculpa-se pela natureza do trabalho que realiza. Trata-se de um filme caseiro, no entanto, a cópia que chegou aos nossos dias é embebida, o que denota que seu autor possuía recursos financeiros. Efetivamente, aponta o programa do evento que ele era um empresário no ramo têxtil que enveredou por uma gama de atividades, entre elas a fotografia e, por extensão, o cinema. 
Assim, desfilam diante dos nossos olhos um sem-número de sequências de crianças a atravessarem os alpes, brincarem com balões e posarem diante da fachada da instituição que as acolhe nas férias, ao lado de seus patronos – os quais posam para o filme como antes o fizeram os sujeitos apanhados pela objetiva dos irmãos Lumière. Imagens lindamente coloridas e muito bem enquadradas dão a ver o mundo ao mundo, como as “fotografias animadas” o fizeram em 1895. O fascínio frente ao poder da imagem de congelar o tempo nunca muda – daí a produção de “Colonia alpina” às portas da década de 1930; daí o nosso encanto pela obra mesmo hoje, quase cem anos mais tarde. 
O feature do programa, “Il siluramento dell’Oceania”, grita “inverossímil” a plenos pulmões. Jay Weissberg lembrou, na apresentação do programa, que outra obra de Augusto Genina apresentada este ano – aliás, na abertura do evento presencial –, “Cirano Di Bergerac” (1922-1923), lamentavelmente não pôde ser exibida virtualmente. Se a opção dos organizadores por “Il siluramento...” não se justifica do ponto de vista estético, ao menos ela serve para que o público se dê conta de que o grosso dos filmes apresentados no período era como esse, mediano. 
Senão vejamos: a obra tem início numa viagem a bordo do navio “Oceania”. Crianças brincando, casais flertando, gente reclusa, gente doente; enfim, nada de inusual, considerando-se as longas viagens transatlânticas da década de 1910. Em seu leito de morte, um aristocrata chama o capitão do navio, Comandante Soranzi (Vasco Creti) e lhe entrega uma carta atinente a um tesouro que encontrou no palacete da família que estava à beira da ruína, a qual deveria ser entregue à filha, Jaqueline de Roccalta (Cecyl Tryan). 
Todavia, a embarcação é torpedeada, numa cena surpreendentemente breve – Weissberg refere-se ao diálogo demasiadamente estrito que o entrecho do filme estabeleceu com o torpedeamento do RR Lusitania, que ocorreu no início da Guerra, o que determinou mudanças importantes na obra para se evitar a sua censura. Ocorre, então, a primeira reviravolta dramática do filme – pois a alusão ao fato célebre não tem em vista a reflexão crítica ou a catarse coletiva, mas sim o espetáculo. 
Daí por diante, “Il siluramento dell’Oceania” desce na banguela a ladeira do inverossímil: achando-se liquidado, o capitão envia por telégrafo a mensagem concernente ao tesouro à filha do homem morto; todavia, o telegrama é interceptado por um trio de embusteiros, que acaba por comprar a propriedade falida onde o tesouro se encontrava, levando a mãe da mocinha à morte. 
As alucinadas reviravoltas da trama aproximam-na, de um lado, dos entrechos melodramáticos, afamados no cinema como no teatro de então; e de outro, dos serials, dos quais a obra era contemporânea, a exemplo de “The Exploits of Elaine” (1914). Neste também a jovenzinha precisa da colaboração masculina para não sucumbir – neste caso, do, pasmem, capitão do navio, que milagrosamente se salva e vai até o palacete entregar pessoalmente a carta à herdeira, encontrando à sua espera a mulher que é membro da quadrilha, a qual se passa pela jovem. 
A cerca de 1h20 de filme, tempo correspondente a, ao menos, 5 episódios de um serial, daria ainda espaço para uma última inverossímil reviravolta – a herdeira, que então descera à rua da amargura, torna-se inopinadamente uma concertista afamada de harpa (instrumento que ratifica a figura frágil e angelical daquela mocinha loura), o que a faz travar conhecimento com o capitão que a procurava e julgava tê-la encontrado na pele da bela embusteira que o recebera no palacete. 
Poupo os leitores de deslindar o óbvio desfecho da trama. Se “Il siluramento dell’Oceania” não se sustenta pela qualidade de seu roteiro, oferece-nos um ótimo exemplo do que se consumia então nos cinemas. Outra característica fascinante dele deve-se a um aspecto atinente à própria materialidade do cinema, mais especificamente ao que ele tem de perecível. Não apenas porque perdeu-se a porção final do filme, mas porque as suas belíssimas e deterioradas imagens (este filme também é colorizado segundo as técnicas de embebimento e viragem) sublinham o papel de máquina do tempo do cinema: ao colocar o passado vivamente diante de nós e simultaneamente explicitar-nos que ele está morto. 

O segundo programa do dia foi composto por “The blood ship” (de George B. Seitz, 1927). Protagoniza-a Hobart Bosworth, o qual, segundo Jay Weissberg aponta na apresentação do programa, comprou os direitos da história (o romance, datado de 1922, é de autoria de Norman Springer) e fê-la chegar à Columbia, tornando-a, depois da rodagem da película, uma companhia respeitável. Sem ser excepcional como “Behind the door” – outro drama marítimo protagonizado por Bosworth (em 1919, desta vez, com direção de Irvin Willat) –, ela é certamente acima da média, e em grande medida pela sofisticação do trabalho do ator. 
A obra narra a história do navio comandado pelo tirano capitão Angus (Walter James), que viaja acompanhado da filha Mary Swope (Jacqueline Logan). A embarcação atraca para engajar novos marinheiros, amealhando entre a tripulação uma fauna humana cuja diversidade representa bastante a população norte-americana do período, composta por considerável mão de obra estrangeira. Embora certos personagens sejam apresentados como tipos, sem nomeação (como “O Negro”, “O Sueco” ou “O Cockney”), surpreendentemente todos ganham humanidade, ao mesmo tempo em que representam a massa de espoliados que une forças para debelar a violência doentia do capitão. 
Dois homens embarcam com interesses afetivos, John Shreve (Richard Arlen) e James Newman (Hobart Bosworth): o primeiro porque se apaixona pela jovem Mary, que tromba com ele ao fugir do pai, e o segundo porque deseja vingar-se de Angus, homem que ele tinha como irmão, porém, o qual, além de lhe roubar esposa e filha, ainda o responsabilizou por certo crime que ele cometeu. 
“The blood ship” empreende um esforço naturalista ao investigar como opera um ego narcisista quando ele é incumbido do comando de um grupo. Angus é colocado diante de si mesmo por James, o qual ele também procura tiranizar, aproveitando-se de seu lugar social hierarquicamente superior. A violência represada de James, no entanto, explode quando ele fica sabendo que o antigo amigo sequestrara e depois abandonara à morte a sua esposa. 
A cena da vingança de James contra Angus é bastante tributária de “Behind the door”, fazendo emergir não a moral melodramática, mas a trágica. A vingança por sua morte social, pela morte de sua mulher e pelo afastamento de sua filha transforma-o num novo Orestes, que despe a máscara da contenção e veste a da ira divina.
Enquanto alguns filmes parecem mais velhos do que são, outros sobrevivem heroicamente à passagem do tempo. Se “The blood ship” o faz, isso se deve a Hobart Bosworth, que, com a colaboração da excelente fotografia de Harry Davis, J. O. Taylor, constrói um personagem matizado, cuja fixidez do rosto mal esconde a tempestade que lhe turbilhona a alma.